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PAULO FREIRE E PINA BAUSCH

Pontas que se encontram, para uma criatividade criticista

A verdadeira educação é a prática, a
reflexão e a ação do homem sobre o mundo
para transformá-lo.
Paulo Freire

Paulo Freire e Pina Bausch, dois pilares interconectados com o mundo Contemporâneo que pede transformações: um pela Pedagogia outro pela Arte, ambos com eixo na “Pergunta” que aciona a experiência existencial do indivíduo como mola propulsora de conhecimento, transformação e capacidade de desvelar o mundo. No contexto destas possibilidades as práticas são pronunciadas e dramatizadas. Inter-relacionamos conceitos, complementamos condutas, comparamos pontos de vista em prática dialógica e criticista, aprofundamos o conhecimento das metáforas em busca da transcendência. Estes procedimentos fortaleceram esses dois Pilares entre si, revelando novas perspectivas no universo Freire, Bausch e a Dramaturgia da Memória. 

Dessa maneira é revelado um casamento, que aponta novas ferramentas, que podem instrumentalizar indivíduos (artistas e pedagogos) na aplicação de um processo criativo que abrange diversas formas de críticas e pontos de vista, articulados por várias camadas, confrontando seus próprios pensamentos vividos, com o principal intuito de libertar o campo epistemológico da criatividade de modelos pré-estabelecidos. Identificamos diálogos entre alguns conceitos da Pedagogia Freiriana e o pensamento Bauschiano, como por exemplo: “Não me interessa como você se move, me interessa o que lhe move”. As relações estruturais e subjetivas de intenção e significação desse entrelaçamento nos revelam liames diretos, construindo uma via desde o ato criador, chegando ao objeto criado de natureza expressiva artística, transformadora e liberta do movimento aprisionador codificado, o qual ainda perdura como centro na formação educacional – artística. 

 

Foto: Leonardo Casto/Estadão
(GERMANY OUT) Pina Bausch, Taenzerin, Choreographin (Photo by Gerhard F. Ludwig/ullstein bild via Getty Images) Gerhard F. Ludwig/ullstein bild/Getty Images

Peço liberdade para não tratar a práxis e a interdisciplinaridade somente como ação que estabelece relações entre duas ou mais disciplinas ou ramos de conhecimento, mas como construção de pontes para a reflexão e libertação de estereótipos e chavões na criação artística, desde o indivíduo e seus conteúdos vividos. De acordo com Freire os homens se libertam em comunhão de diálogos de forma crítica. Em Bausch a cena é construída com projeção de pontes entre o ser você mesmo, o não intelectualizar, o não ser óbvio e outras sugestões que nos despem de conceitos cristalizados sugeridos durante alguns processos de criação. São conexões, interconexões, atravessamentos e outras interações nos limites do real, do imaginário, da intuição saindo do usual.  Caberá ao professor/orientador, ao coreógrafo/diretor ajudar o indivíduo a construir estes resultados com base nas suas habilidades e informações próprias, no lugar de simplesmente transmitir conteúdos codificados.

Visto numa perspectiva de “Rede de Conhecimento” é possível constatar que o aprendizado ocorre mais adequadamente em ambientes colaborativos, na interdisciplinaridade, movendo vivências e afetos de cada um nessa construção de possibilidades. Sendo assim, Interdisciplinaridade é a práxis que anula a maneira fragmentada de perceber a realidade e o conhecimento. É, também, o movimento que cria a possibilidade de comunicação entre as ciências. A ciência transdisciplinar é a que poderá desenvolver-se a partir dessas comunicações. Este movimento está além de fronteiras, dando liberdade – liberdade de criação – com aumento das faculdades cognitivas, coletivas e pessoais de cada um.

Dentro dessa liberdade é possível que novos aprendizados brotem com a consciência de que assim como não há corpo fragmentado na dança, também não há palavra solta sem conexão com a realidade. Nesse encontro de palavra-corpo (Freire) e corpo-palavra (Bausch) pode-se ver os dois soltos no ar como luzes que apontam e direcionam movimentos numa dança promotora de autoconhecimento e reconhecimento da alma da palavra aprendida e do corpo criando e indo além das fronteiras. Ou seja, o processo de criação se vê ilimitado e iluminado. Na luz não há vazio que não possa ser preenchido.

 Reconhecemos Paulo Freire como o educador que mais utilizou a interdisplinaridade como teoria do fazer, sem dicotomia entre ação e reflexão. Nesse ponto, não cabe falar em uma coisa isolada, mas em ações no plural, em intersubjetividade, em intercomunicação dos atores. Freire é um dos educadores que mais construíram pontes para o ensino e a produção de conhecimento. Transcendeu, dessa forma, o conceito de interdisciplinaridade entre disciplinas, entrelaçando o Sujeito Social e Histórico e os conteúdos de vida, já existentes no educando. Conteúdos de vida, então, ao invés de disciplinas codificadas. O entendimento consciente da construção do dialogo interpessoal criticista leva a responsabilidades específicas de cada pessoa reconhecer-se no “todo” como sujeito de transformação. A ação movida por vivências se interconecta construindo uma visão mais ampla a respeito da práxis para o conhecimento transformador da sociedade. A prática interdisciplinar, dessa forma, rompe com padrões tradicionais que priorizam a construção do conhecimento de maneira fragmentada, revelando pontos em comum e favorecendo análises críticas a respeito das diversas abordagens com pontos de vista diversos para um mesmo assunto.

Esvaziamento como propulsor de ações criativas.

Na condução desse processo criativo onde dialogam Freire e Bausch o esvaziamento é muito importante; nos referimos aqui, à superação da preparação física com técnicas artísticas, anteriormente codificadas e estabelecidas. Com isso damos um espaço maior para a criatividade, ou seja, mais vazio para ser preenchido. Sem querer um procedimento rigidamente escrupuloso na conservação da pureza da criação – o que sem dúvidas não existe -, idealizamos um conceito de criação significando algo interno, memórias, que se externalizam, estendendo-se para além dos limites do existente, do óbvio já visto comumente. Ocorre uma materialização a partir da ausência de códigos estabelecidos, visando ao inusitado, pois costumamos muito usar os meios existentes imitando o já criado. Nós revelamos muitas vezes o que já existe e assim, voltamos ao mundo do óbvio. A direção em buscar outras possibilidades a serem materializadas, esvaziando-se de conteúdos massificados, petrificados em nossas mentes, provoca dúvidas, ações criativas críticas e transformadoras. Com a atitude do esvaziamento tentamos fortalecer a via da percepção sensível, a “tomada de consciência”. Na concepção de Peter Brook, esse espaço vazio original é um vazio pleno. Um campo vazio e potente, pronto para ser explorado. Não é um vazio oco, um nada inerte é o local para as descobertas, em sentido estrito, refere-se ao espaço interno que se ocupa do conhecimento criativo, intuitivo, inusitado e transformador. O conceito de vazio, assim como os conceitos de Yin e Yang, é determinante. Segundo a ótica chinesa o Vazio não é um lugar onde existe o nada, mas um elemento eminentemente dinâmico e agitador. Ligado à ideia dos sopros vitais e dos princípios de alternância Yin e Yang, ele se constitui, por excelência, no lugar onde se operam as transformações, onde o pleno alcança a verdadeira plenitude. E assim reforçamos nosso ponto de vista sobre o Vazio. Os chineses mesmo fora de um conhecimento mais profundo, sejam eles artistas ou não, aceitam intuitivamente o vazio como um princípio de base.  Sendo assim, o vazio é provocador; apesar do seu silêncio necessário, não se deixa acomodar em equações, respostas silogísticas e estabilizadoras. Ao contrário, uma vez acionado como lugar onde deve nascer o criativo, ele desconhece os caminhos de retorno às quietudes de um ponto final e tanto pode explodir em poesia inusitada, como se perder nas areias movediças da vida, em um momento qualquer, sem maiores anúncios, explodir em reminiscências indagadoras: o que é então criar artisticamente? Como criar sem nos deixarmos emparedar pelos padrões dos códigos? Como potencializar a criatividade e sua capacidade de diferir, de ser original, no momento do processo criativo.

Por Lícia Morais.  Dra. Em Artes, Pós doutorado em Pedagogia da Criação